No Rancho Novo, em Nova Iguaçu (RJ), predominavam os bares precários, negligenciando-se a forte cultura nordestina e as pessoas de melhor renda
Por Valerio Fabris
Havia seis anos que três amigos se encontravam no Toca de Tatu, nas tardinhas das quintas feiras. Tomavam cerveja e petiscavam nesse bar, cujo salão se escancara ao vértice de uma esquina, no bairro Rancho Novo, em Nova Iguaçu (RJ). Em uma das mesas distribuídas no interior do estabelecimento e ao ar livre, eles habitualmente tomavam a cerveja no copo americano. O garçom enfiava o vasilhame da bebida no porta garrafa de isopor. O churrasquinho vinha no espeto (de carne ou queijo) sobre o prato de vidro azul transparente.
Naquele dia de junho de 2013 em que os amigos se juntavam no Toca de Tatu para o rotineiro encontro das quintas-feiras, o noticiário dos jornais e das tevês estava tomado pela série de protestos deflagrados, em São Paulo, contra o aumento das tarifas de ônibus. Havia três anos que se iniciara a Operação Lava Jato, com a prisão do doleiro Alberto Youssef e de mais 16 pessoas. Em 12 de junho do ano seguinte se iniciaria a Copa do Mundo FIFA.
Em meio a tantos assuntos eletrizantes, a conversa dos três amigos incluía um tema igualmente relevante, porém mais ameno: a importância dos bares e restaurantes na vida cotidiana dos brasileiros. Estes companheiros do ‘happy hour’ são quase vizinhos. Os três residentes no bairro Rancho Novo: Alan Marques da Fonseca, que durante bastante tempo havia trabalhado na AmBev e chegou a ser dono de um bar em Cachambi (na Zona Norte Carioca); Armando Fernandes da Silva, sócio com a filha e a mulher de uma escola infantil (do pré-primário e primário); e Eduardo Correia da Silva, dono de uma próspera oficina de automóveis.
Eles então se perguntavam qual era, na época, o motivo de não existir no Rancho Novo um bar ou restaurante com amplas copa e cozinha, banheiros feminino e masculino bem iluminados e equipados com louças, espelho e bancada de bom padrão? Isso lhes parecia incompreensível, já que o bairro dispunha de razoável número de consumidores com poder aquisitivo para frequentá-los.
Por que os bons estabelecimentos estão apenas do outro lado da linha, se aqui há clientes? O relato sobre essas conversas no Toca do Tatu foi feito por um dos três amigos, Eduardo Correia da Silva, que concedeu entrevista à Bares & Restaurantes. Ele ressalva que não quer, de jeito nenhum, menosprezar o Toca de Tatu. “Pelo contrário, tenho o maior afeto por esse estabelecimento e por seus fregueses. Afinal de contas, foi o lugar que a gente havia escolhido, porque o que prevalecia no Rancho Novo eram os pés sujos. E o Toca do Tatu foge a essa regra geral; é um bar simples, porém muito bem cuidado”.
Os bate-papos no Toca do Tatu funcionavam como uma oficina de ideias, um workshop entre três camaradas. Nesses frequentes questionamentos, eles se indagam sobre o porquê de os estabelecimentos melhor organizados estarem apenas do outro lado da linha do trem, que dividia o Rancho Novo da área central da cidade. Lá estavam os letreiros Toca de Traíra, Spoleto, La Mole, Via Steak & Sandwiches, Akira Sushibar. O pessoal do Rancho Novo, quando queria uma opção de algum bar ou restaurante em que um pudessem usufruir momentos de lazer em família, atravessava a linha férrea.
Mais do que uma crítica despeitosa, o que eles exercitavam era a identificação da oportunidade de negócios representada pela defasagem do setor de bares e restaurantes no bairro deles. Até que, certo dia, o colóquio informal convergiu à objetiva proposta de os três se juntarem, como sócios, em um empreendimento gastronômico no Rancho Novo. Alan já sugeriu: um misto de bar e choperia. Eduardo se dispôs a fazer o primeiro aporte de capital.
Foi dada a largada no detalhamento do projeto. Inevitavelmente, veio à tona a questão do nome do futuro estabelecimento. Alguém lembrou que no existia na vizinhança uma loja chamada ‘Colarinho Branco’. Por que não adotá-lo? Fizeram uma tempestade de ideias (“brainstorm”). A seguir, a escolha acabou referendada na consulta feita com os familiares. O nome era uma indicação clara e direta de um chope gelado e bem tirado.
Metas: bar espaçoso, toaletes limpíssimas, chope gelado, petiscos campeões, gentileza total
No dia 4 de outubro de 2014 abriam-se, enfim, as portas do ‘Colarinho Branco’. Os sócios empenharam-se em edificar um bar (ou uma choperia) de acordo com o figurino idealizado: espaçoso (área útil de 280 metros quadrados), dotado de cozinha, copa, salão e banheiros nos trinques. A estes pré-requisitos se somaria mais um atributo positivo: chope Brahma bem gelado e bem tirado (obviamente com um fino colarinho de espuma, ajudando-se assim a manter a temperatura), atendendo-se assim a uma tradição carioca.
Acrescentaram aos ingredientes do sucesso do negócio um fator decisivo: a alta qualidade dos tira-gostos. Alan, que já havia trabalhado na Brahma e tinha sido dono de bar, propôs a contratação do bamba dos tira-gostos, o craque Paulette, como é popularmente conhecido Paulo Barbosa da Silva. A partir de 2002, ele havia sido sócio da irmã Kátia Barbosa no bar Aconhego Carioca, localizado no bairro Praça da Bandeira, região Norte do Rio, região que é administrada pela subprefeitura da Grande Tijuca.
Cinco anos depois, o primoroso cozinheiro decidiu abrir seu próprio bar no mesmo bairro da Praça da Bandeira, o Petit Paulette. Em 2012, vendeu o ponto, que ficou passou a ser chamado de Tempero da Praça. Em 2015,o estabelecimento foi revendido pelos novos proprietários, instalando-se lá o Dida Bar e Restaurante. Acabaram localizando o mago de tira-gostos, o que deu aos três sócios a certeza de que com ele se preencheria um dos requisitos para o sucesso do estabelecimento (bar/choperia), o que ocorreria com a adoção de cinco vertentes estratégicas.
Ou seja: 1) a abertura do bar preencheria a lacuna de uma região carente de estabelecimentos adequados à clientela de jovens, mas igualmente de casais e a famílias inteiras, em um ambiente descontraído, dotado de instalações do melhor padrão, desde a cozinha à copa, do salão aos banheiros; 2) um bar que primaria pela qualidade do chope, bem gelado e bem tirado, fazendo-se justiça ao nome ‘Colarinho Branco’; 3) um cardápio de tira-gostos assinado por Paulette, o astro da cozinha de botecos; 4) os donos estariam diariamente nas quatro casas, em diferentes horas do dia; 5) os 10% das gorjetas teriam de ser distribuídos igualmente entre todos os funcionários, medida que expressaria o apreço por todos os colaboradores, da faxineira ao garçom.
Eduardo da Silva lembra que, desde a inauguração, em outubro de 2014, o ‘Colarinho Branco’ foi sucesso imediato, já recebendo um público de cerca de 200 pessoas. Montou-se uma casa em que, pelas características informais da freguesia, haveria a possibilidade de se distribuírem mesas sobre as calçadas, “como é do jeito carioca de se estar em um bar”. Com tais arranjos, o número de frequentadores poderia ir além das 200 pessoas, bastando que ocorresse um fato novo impulsionador da visibilidade do recém-inaugurado estabelecimento.
Em maio de 2015, a sócio-diretora e fundadora do Comida di Buteco, Maria Eulália Araújo, percorreu alguns bares de Nova Iguaçu para divulgar o evento que ocorreria no ano seguinte. Ela queria expandir o concurso além dos limites da cidade do Rio de Janeiro, alcançando-se também municípios da região metropolitana. Ela já conhecia bem o mago dos tira-gostos, Paulette. No encontro com ele e os três sócios do ‘Colarinho Branco’, convidou-os a irem à festa em que seriam anunciados os campeões cariocas de 2015.
Animados com o que viram na noite das premiações, Alan, Armando e Eduardo decidiram, com o aval de Paulette, que participariam da edição 2016 do Comida di Buteco. O bar ficou em segundo lugar no concurso daquele ano. Eduardo diz que, com “a descomunal visibilidade dada ao ‘Colarinho Branco’ pelo disputadíssimo prêmio do Comida di Buteco, o movimento do bar foi duplicado, atingindo a cerca de 400 pessoas”.
Nas noites de superlotação, o que geralmente ocorre nas sextas-feiras, há fregueses que ficam de pé, “com a cerveja dentro de um balde de gelo colocado sobre uma mesinha de apoio”. Realizam-se apresentações de música o vivo da quinta-feira a domingo, no formato voz/violão, com o repertório básico do sertanejo contemporâneo, do rock nacional da era pós-1980, e da seleção dos grandes sucessos da MP (interpretados pelo instrumentista e cantor Marcelo Tuan, artista de grande sucesso em Nova Iguaçu). “Nessas noites, há filas na porta”, diz Eduardo.
Aos milhões de nordestinos apegados às origens, surge o imenso restaurante temático
No final de 2018, do outro lado da rua do ‘Colarinho Branco’ uma grande loja de materiais de construção (com aproximadamente 500 metros quadrados) fechou as portas. Os sócios logo consideraram a hipótese de tentar adquirir o ponto para se montar um bar e restaurante dedicado à temática nordestina. Ainda nos tempos dos encontros de fins de tarde das quintas-feiras, no bar Toca de Tatu, os amigos Alan, Armando e Eduardo falavam de uma cidade do Rio e uma região metropolitana com enorme população de origem nordestina, muito apegada às lembranças da terra natal.
A inequívoca demonstração da profundidade desse vínculo com as raízes nordestinas, como disserta Eduardo, é a Feira de São Cristóvão (popularmente conhecida como a Feira dos Paraíbas), que se constituiu na terceira atração de visitantes no Rio, sendo superada apenas pelo Corcovado e o Pão de Açúcar. A Feira é realizada desde 1945 (ano em que terminou a II Guerra Mundial), tendo completado 74 anos de ininterrupto funcionamento. A feira fica aberta ao público de quinta a domingo.
“A Feira dos Paraíbas é o único grande espaço de dedicado ao lazer e à cultura nordestina em todo o Grande Rio. Os moradores de Nova Iguaçu atravessam mais de 30 quilômetros para ir lá, reencontrando-se com as suas raízes. O poder de atração da feira se repete em toda a periferia do Rio e da região metropolitana”, diz Eduardo. Com base nesse diagnóstico de mesa de boteco, os três amigos concluíram que aí estaria localizado outro potencial de mercado, razão por que decidiram comprar o ponto que ficou vago com o fechamento da loja de materiais de construção das imediações do ‘Colarinho Branco’.
Os sócios lançaram-se em uma intensiva pesquisa sobre as comidas, peças decorativas e atrações musicais, em seguidas incursões à Feira de São Cristóvão. Também viajaram a João Pessoa para visitar as feiras e os restaurantes típicos da capital paraibana. O resultado é que no dia 4 de abril de 2017 registraram na Junta Comercial o nome ‘Gigante Nordestino’ para a nova casa. Tamanho foi o sucesso que, aos domingos, muitos clientes ficavam do lado de fora, sem encontrar lugar nas 80 mesas do restaurante, totalizando-se 320 pessoas.
Decidiu-se então que o ‘Colarinho Branco’, cujo funcionamento ia das terças-feiras aos sábados, também teria de ser aberto nos domingos, de modo a acolher a parcela excedente da clientela do ‘Gigante Nordestino’. Ambas as casas permanecem fechadas às segundas-feiras. O cardápio é “noventa por cento nordestino”, mantendo-se uma pequena proporção de pratos comuns aos restaurantes cariocas, com vistas a atender a residual parcela de fregueses que é pouco afeita às receitas regionais, como a buchada de bode.
As opções são servidas em fartas quantidades. “Um baião de dois, que é um prato para duas pessoas, acaba sendo suficiente para quatro pessoas que não tenham um apetite exagerado”. (O baião de dois é um cozimento de arroz e feijão de corda, com toucinho defumado cortado em cubinhos, queijo coalho e temperos).
O forró Pé de Serra, garçons trajando-se ao estilo dos cangaceiros, e redes pendendo do teto
A música harmoniza-se com a comida. O trio do forró tradicional (zabumba, triângulo e sanfona), também chamado de Forro Pé de Serra, está sempre presente no ambiente do ‘Gigante Nordestino’, enquanto os garçons circulam de mesa em mesa, trajando sandália, cinturão atravessando diagonalmente o peito (uma alusão às cartucheiras), e o chapéu de Lampião, tudo nos moldes em que, pelo menos na fase inicial de sua carreira, nos anos 1940, apresentava-se Luiz Gonzaga, o ‘Rei do Baião’. O teto do restaurante é coberto por multicoloridos tecidos e redes.
Hoje, são três restaurantes ‘Gigante Nordestino”. Em agosto de 2018, abriu-se a filial do bairro Vista Alegre (na Zona Norte carioca, próximo à Vila da Penha e a Irajá), com 95 mesas, e capacidade para 380 pessoas. Em julho, inaugurou-se o ‘Gigante Nordestino’ do município de Campo Grande, na Zona Oeste da região metropolitana, com mais de 100 mesas, e capacidade estimada em até 450 pessoas. O padrão de decoração, do atendimento e do cardápio das unidades de Vista Alegre e de Campo Grande é “rigorosamente o mesmo”, como enfatizou Eduardo, do restaurante de Nova Iguaçu. “Nos demos uma única identidade às três casas”.
A arte de idealizar bem e de colocar em prática o que foi concebido, com máxima qualidade
A diretora Maria Eulália Araújo, do Comida di Buteco, diz que os sócios da ‘holding’ denominada ‘Rancho dos Três Amigos Ltda’, sob a qual estão o ‘Colarinho Branco’ e os três restaurantes ‘Gigante Nordestino’ realizaram uma rara proeza no universo dos empreendedores do segmento brasileiro de bares, que é o de duplamente identificar e realizar as oportunidades que ainda se encontram latentes no mercado, e que são por pouca gente percebidas.
E, ainda mais do que isso, como aduziu ela, fazem com que o idealizado se transforme em uma muito bem-sucedida realidade. “O que às vezes a gente vê no setor são ótimas concepções, mas com nenhuma execução. Os três sócios representam um caso realmente diferenciado, tanto na sensibilidade e inteligência de diagnosticar o mercado, localizando as oportunidades, quanto na capacidade de executar com enorme qualidade o que conceituaram”.
O efeito positivo dos empreendimentos dos três sócios no comércio do bairro Rancho Novo
Há um aspecto que diretora do Comida de Boteco faz questão de sublinhar: “Esses empresários do ‘Colarinho Branco’ e do ‘Gigante Nordestino’ contribuíram para que se elevasse o nível dos estabelecimentos da região”. Eduardo da Silva, sócio do ‘Rancho dos Três Amigos’ concorda com Eulália, sublinhando que é “muito visível” o efeito irradiador da qualidade dos dois restaurantes no comércio no Rancho Novo.
“Fomos um divisor de águas no bairro. Principalmente na área da gastronomia. Porque todos os empresários do setor que vieram depois se sentiram na obrigação de fazer uma coisa bonita, uma coisa legal. Hoje, temos duas hamburguerias que não perdem para hamburguerias de lugar nenhum do Brasil. A gente tem uma das melhores comidas japonesas da redondeza. Tem outros bares. A gastronômica daqui cresceu muito, muito, e com qualidade”.
*Reportagem originalmente publicada na revista Bares & Restaurantes